quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Primeiros capítulos de "Meninos que nao queriam ser padres"

ANTES DE MAIS NADA


"Meninos que não Queriam ser Padres" é (um romance?) escrito na primeira pessoa e baseia-se na vida estudantil do autor, nos seus “diários de bordo”, enriquecidos com depoimentos de contemporâneos e contaminados com alguma fantasia. Conta a história de um grupo de meninos arrancado da roça e colocado em uma sala de aula (na clausura de um Seminário, em Aracaju), inicialmente guiado por um Deus muito próximo, e depois solto no mundo sem a proteção a que se acostumara. Como Antônio Saracura – o personagem principal – que foi trazido da rude Terra Vermelha, em Itabaiana, quando nem sabia ainda falar a língua dos habitantes da cidade...
A ficção sempre está roubando a frágil realidade do enredo e devolvendo-a mais adiante, para roubá-la de novo. E em algumas situações, roubando também prudentemente os nomes reais dos personagens – atribuindo-lhes pseudônimos – preservando-lhes assim a idoneidade que angariaram. Mas há situações em que os nomes verdadeiros são preservados.
O livro resgata – mesmo com a fantasia dourando as passagens mais áridas – os costumes de uma época (início dos anos sessenta), o dia-a-dia de um tradicional colégio (ainda hoje em plena atividade) quando ensaiava os seus primeiros passos. Até poderia ser um romance histórico de valia, não fosse o pendor romanesco do autor.
Desejamos que a leitura do livro proporcione momentos agradáveis e de muito proveito.



E VIVA ARACAJU!

Cheguei a Aracaju naquele final de manhã de domingo. Fui o primeiro a descer da marinete, pois tenho a natureza agoniada – a bola esquipada, como chamam lá em Terra Vermelha.
De boca aberta de admiração, olhava os velhos casarões da “Rua da Frente”, enquanto me protegia debaixo de uma amendoeira enrugada, até que os companheiros descessem também, certamente ainda tolhidos por outros passageiros apressados. Dez metros adiante, uma imensidão de água sacudia-se, inquieta, engordada pela maré, sobrando na ribanceira baixa. Era o rio Sergipe, o novo conhecido que sabia estar ali, tentando encontrar uma maneira de entrar no oceano, enquanto este o empurrava de volta, num embate surdo de gigantes medindo forças. Um grande saveiro com mastros desnudos balançava-se amarrado num molhe que avançava pelo rio, mais à direita... Senti vontade de chegar mais perto, mas caía uma chuvinha fria, desencorajadora. E os dois colegas já vinham vindo para a proteção da minha amendoeira. O Padre também apareceu, abraçado a uma sacola e, de lá mesmo da porta da marinete, sinalizou nos chamando alto:

– Vamos andando assim mesmo, pois esta chuva não vai parar tão cedo!

Sentia-me engolido pela cidade desconhecida e grande (que nem era assim tão grande ainda), igual ao profeta no ventre da baleia, e segui atrás da batina preta do Padre Artur, como se estivesse deslizando por um túnel, imprensado aos lados por casarões que topavam nas nuvens abaixadas de chumbo e chuva.
Aracaju era impressionante!
E eu estava nela, bloqueado e ainda sem fala, sentindo aquela sensação que muitas vezes ouvira falar em Terra Vermelha, contada por quem a conhecia, vangloriando-se nas rodinhas de fofocas, dramatizando o senso de estupefação que se dizia dominar quem a via pela primeira vez. Naquelas oportunidades, eu não atinava para o significado da recomendação:

– Bote uma pedra na boca, para não dizer besteira demais e, depois, não virar motivo de mangação!

Não trouxera pedra – nem precisaria tê-lo feito.
Sentia dentro da boca, estufando-me as bochechas, calcando a língua para baixo e espremendo o cérebro contra a abóboda do casco, uma pedra grande e bem mais dura do que as que se espalhavam no leito seco do rio Jacaracica, com as quais derrubávamos os oitis maduros de polpa tenra, que sempre ficavam nos galhos mais altos.
Ainda bem que não precisara falar! Apenas seguir o Padre.
Finalmente, Aracaju!
E eu pisando forte nela, parecendo dono.
Meu pai, Zé de Pepedo Saracura, possuía uma grade (banca para venda de farinha e outros cereais) no Mercado Central de Aracaju, para onde vinha todo final de semana.

– Muito melhor do que a pedra fria e disputada do Aribé! – sempre dizia.

Era um espaço seu, garantido, se bem que apenas no sábado e no domingo, pois os verdureiros o invadiam no decorrer da semana. E deixavam um tapete de tomates maduros pisados, difícil de limpar. Mas ele vinha sozinho, saindo do sítio na sexta-feira à noite. E só retornava no final da manhã do domingo, no mesmo caminhão que trouxera as mercadorias e que ficara aguardando os passageiros, estacionado em uma área vizinha. Nós, os filhos, vivíamos adulando-o para viajarmos junto. Mas ele sempre cortava seco:

– Não preciso de ajuda pra vender farinha. Preciso de vocês é no sítio, onde tem muito serviço.

Ir para Aracaju, então, transformara-se numa obsessão, um sonho que cada vez incomodava mais as cabeças dos pequenos tabaréus do sítio Saracura. Eu, de minha parte, passava horas a fio, imaginando como seria esse lugar espetacular. Comparava-o à Grécia do Pavão Misterioso e a outros reinos das histórias de cordel, cantadas pelo meu avô Totonho Bernardino, povoando-o de valentes cavaleiros e princesas encantadas. Mesmo tendo informações diferentes dadas por pessoas que a conheciam, era fácil imaginá-la cheia de palácios e mistérios. Se a moldava na mente, por que fazê-la pequena?
Oliveira era o único irmão que conhecia Aracaju, ou melhor, o Hospital de Cirurgia, onde fora examinar suas pernas que doíam por dentro, querendo estourar. Ficara apenas por duas semanas – esperando o resultado dos exames. E agora reclamava que nunca mais voltara lá. Dizia que fizera amigos importantes, médicos e enfermeiros, que poderiam ser úteis em caso de qualquer doença da família. Talvez nem se lembrassem mais dele, ou então, nem se lembrariam, se não voltasse qualquer dia para dar, pelo menos, um alô ligeiro. Mas meu pai não se comovia com essa interesseira lenga-lenga e limitava-se, quanto muito, a fazer uma promessa 
vaga (ainda bem!):

– Deixa ver...

E eu, como era o mais velho dos irmãos – a exceção de Marinês, que tinha mais quatro anos – e um pouco mais escolado em artimanhas, aproveitava a obsessão que povoava a cabeça dos meus irmãos menores, para lhes pregar peças.
Uma vez, a troco de um favor recebido, prometi que os levaria a Aracaju. Eles, porque queriam demais, nem desconfiaram, no momento, que eu nunca fora lá. Nem tinha força sequer para definir a minha própria ida e, como eles também, morria de vontade de ir. Levei-os ao quintal, onde crescia um grande cajueiro carregado de frutos maduros. Eles reclamaram, achando a estrada errada.

– E Aracaju é por aí, é?

Expliquei que se tratava de um desvio novo, que encurtava o caminho. Ficaram mais intrigados ainda ao me verem subir no cajueiro (“que perda de tempo”!) e, lá do alto, arrancar cajus maduros e gritar para que eles se posicionassem em fila, lá embaixo. Fiz com que cada um aparasse alguns frutos, chamando-os pelo nome:

– Agora você, Jaime! É a sua vez! Cuidado para não deixar cair! Não pode amassar!

Quando todos tinham cumprido o cerimonial hilário, desci manhoso, segurando a custo o riso de mangação. Os meninos olhavam-me intrigados e tendo já certeza de que os fizera de bestas, exigiam explicações sobre aquela palhaçada.

– Vocês não queriam ir para Aracaju? Então! Acabaram de ir “aparar cajus”.

Pularam todos sobre mim, cobrindo-me de tapas e pontapés, fazendo-me fugir para longe.
Mas agora, na capital, eu nem podia ver a cidade direito. Descera da marinete com outros dois meninos – o galego gordo e praciante, Evilázio, e o moreno enferrujado (e de sítio, como eu) Júlio – também candidatos a seminaristas, e mais o vigário de minha cidade. Não entendia por que Evilázio, que me disseram ser filho de um rico fazendeiro da cidade, olhava-me com certo desprezo... Eu sentia!
E, debaixo de chuva, seguimos todos para o Seminário, a pé. O Padre puxava a fila, caminhando ligeiro com sua batina um pouco levantada pela mão prudente, para não deixar sujá-la com respingos de lama. Andava ligeiro. Era de estrutura vigorosa e ainda não tinha quarenta anos de idade. Não parecia ter! E nós três, cada um com sua malinha de couro curtido na cabeça, servindo de guarda-chuva, corríamos atrás para não o perder de vista.
A chuva continuava caindo fina e fria, encharcando tudo, espantando as pessoas. Chuva de verão, restos da forte trovoada da noite anterior, de um distante dezembro de 1958.
Logo estávamos na portaria do velho Seminário, na Rua Dom José Thomaz, 194, espremendo-nos no pequeno recuo que existia mais para proteger a madeira da grande porta trabalhada do que para abrigar quem ali parasse. O Padre Artur calcou o dedo num botão gasto. A água escorria em cachoeira silenciosa pela fachada nua do velho casarão e, como agulhas afiadas, respingava nos meus pés molhados, que não conseguiram um bom lugar no recuo. Depois de cinco minutos insistindo na campainha, a grande porta estremeceu, abrindo-se devagar, fazendo aparecer do lado enxuto um padre novo, vestindo uma alinhada batina preta. Tinha um rosto largo e vermelho, e uma cabeça sobranceira de pessoas superiores. Os cabelos, penteados e escorridos para trás, brilhavam a custo de boa brilhantina. Era o Reitor da casa, mas eu imaginei que fosse o rei daquele lugar. Seus olhos de vidro fixaram-se no grupo molhado, deixando escapar uma incompleta sombra de pena. Mas rapidamente se recompôs e fez-nos entrar. Depois de cumprimentar efusivamente o Padre Artur, estendeu-nos a mão fina, que só seda.

– A bênção, Padre! – balbuciei, beijando-a, quando chegou a minha vez.

– Deus o abençoe e seja bem-vindo ao nosso querido Seminário.

Ao segurar minha mão cheia de calos da enxada e engelhada pelo frio, demorou-se demais, como se a estivesse estudando. Por fim, saindo do pequeno transe, perguntou:

– Como é o seu nome, meu filho?

Não percebi que a pergunta era a mim dirigida. Não a fizera aos colegas que me antecederam. Meu raciocínio ainda não despertara inteiramente do torpor causado pelo choque da
chegada. O Padre Artur, que estava ao lado, bem perto, cutucou-me, resmungando:

– Fale, meu filho!

– Eu, Padre?! – titubeei.

– Você mesmo! E quem haveria de ser? Como se chama? – insistiu o Reitor, que percebera a minha hesitação.

– Sou Antônio.

– Muito bem! Já tem dez anos de idade, Antônio? – continuou.

– Tenho treze! – respondi.

– Trabalhava na roça, não era? Trabalhou demais e esqueceu-se de crescer?

– Foi sim, senhor! – respondi, mecanicamente.





Por que este Blog?

Eu criei ontem um blog com o mesmo título, mas no momento de digitar o endereço, errei. Em vez da palavra 'nao', digitei 'no'. Mas eu precisava que o url fosse 'meninosquenaoqueriamserpadres'.  Verifiquei se podia alterar o  url, mas não vi como. Então criei outro com o url correto. Mas estou chateado, pois, certamente, estarei ocupando um espaço a mais, sem necessidade. Mas vou continuar estudando o assunto, até encontrar uma maneira de deletar o blog 'meninosquenoqueriamserpadres' (veja que esta  'no'  nas  11 e 12 dígitos.

Este blog destina-se a guardar o que publicado sobre o meu novo, que está no prelo, que se chama "Meninos que não queriam ser padres".